No pós-feriado, bem cedo, navegando pelo infindo que é a internet, li uma notícia e fiquei imediatamente curiosa: “o Ministério do Meio Ambiente – MMA indica a aplicação do Código Florestal em casos de desmatamento da Mata Atlântica, prevalecendo assim anistia para os desmatadores irregulares até 2008”. Curiosa porque, até onde eu sei, há a prevalência da aplicação da Lei da Mata Atlântica sobre a do novo Código Florestal, afinal lei geral não prevalece sobre lei especial e mais protetiva em matéria ambiental.
O que é a Lei da Mata Alântica?
Para entendermos melhor a questão, preciso explicar que há, no Brasil, a Lei n.º 11.428/06, conhecida por Lei da Mata Atlântica, que versa sobre a proteção deste Bioma. É uma lei especial, editada conforme requer a Constituição Federal de 1988, em seu art. 225, parágrafo 4º, em que se lê “§ 4º A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais”. Há, ainda, a Lei n.º 12.651/12, que é o famoso novo Código Florestal (prefiro chamar de Lei Florestal), uma norma controversa que dispõe, de maneira geral, sobre a política de uso, conservação e preservação florestal no país.
Dentre as características que tornou este Código controverso, está a possibilidade de manutenção das atividades agrossilvipastoris, de ecoturismo e de turismo rural em áreas de preservação permanente – APP inseridas em áreas rurais consolidadas até 22 de julho de 2008. Há também a chance de recuperar áreas menores do que as desmatadas em APP, com o mesmo marco temporal (artigos 61-A e 61-B da Lei Florestal. Isto é considerado pelos cientistas políticos da área ambiental e por parte da área técnica como uma anistia aos desmatadores.
Aplicação da Lei
A indicação da aplicação destas regras em área protegida pela Lei da Mata Atlântica foi feita no mês de abril de 2020 através da aprovação, por meio do Despacho n.º 4.410/2020 do Ministério do Meio Ambiente, da Nota Jurídica n. 00039/2020/CONJUR-MMA/CGU/AGU e do Parecer Técnico n. 00115/2019/DECOR/CGU/AGU. Estes documentos foram emitidos pela Advocacia Geral da União – AGU e são vinculantes aos órgãos ambientais (IBAMA, ICMBio, MMA…), dado que estão oficialmente aprovados.
Resolvi então procurar mais sobre o assunto e encontrei o mencionado Parecer que traz todo o histórico da discussão acerca da aplicabilidade das legislações mencionadas.
Descobri que até pouco tempo atrás, o Ministério do Meio Ambiente entendia não ser possível aplicar as diretrizes dispostas nos arts. 61-A e 61-B para APPs inseridas em áreas rurais consolidadas dentro da área legalmente delimitada como de ocorrência natural do Bioma Mata Atlântica. Em 2017, por exemplo, o órgão firmou entendimento através da NOTA n.º 52/2017/CONJUR-MMA/CGU/AGU, que os dispositivos mencionados são inaplicáveis ao Bioma, por representarem regime menos protetivo.
Divergências e mudanças na aplicação
Em 2019, no entanto, a Advocacia Geral da União – AGU, através de seu Departamento de Coordenação e Orientação de Órgãos Jurídicos- DECOR mudou de ideia sobre o tema. Quem também mudou de ideia na mesma época sobre este assunto foi a Procuradoria Federal do IBAMA, o que está firmado no DESPACHO Nº 601/2019/GABIN/PFE-IBAMA-SEDE/PGF/AGU. O argumento central de ambos os órgãos é que o Código Florestal trouxe regras para uma fase transitória, como as dos arts. 61-A e 61-B, que foram abraçadas e julgadas constitucionais pelo STF quando da análise das Ações Diretas de Inconstitucionalidade – ADINs sobre a norma.
A AGU argumenta, entre outras cosias, que no mencionado julgamento, a Corte decidiu que não há nenhuma inconstitucionalidade nos dispositivos relativos à área rural consolidada. Verdade. Porém, o STF não analisou especificamente a possibilidade de aplicar os artigos 61-A e 61-B às áreas de Bioma Mata Atlântica, mas tratou o assunto de forma geral. Devo dizer que não entendo que o Código Florestal não se aplica às áreas protegidas pela Lei 11.428, mas que ele deve ser aplicado conforme preconiza esta lei especial. Ora, a Mata Atlântica tem uma proteção a mais em relação aos outros biomas.
Nesse trecho do Parecer, a AGU faz uma ginástica interpretativa para garantir que não há retrocesso na aplicação dos arts. 61-A e 61-B do Código no Bioma Mata Atlântica.
Vejamos o seguinte excerto: “Pois bem, no caso examinado (Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 4901, 4902, 4903 e 4937 e Ação Declaratória de Constitucionalidade n.º 42), o STF decidiu pela inexistência de ofensa ao princípio da vedação de retrocesso, admitindo a constitucionalidade do novo regime das APP, que estava e continua regulado inteiramente pelo Código Florestal. Ou seja, ainda que se questionasse tratar-se retrocesso na proteção do Bioma Mata Atlântica, seria forçoso reconhecer que esse Bioma sempre contou com a proteção do Código Florestal para as APP nele inseridas… Nesse sentido, ainda que não tenha havido uma manifestação explícita sobre a inclusão do Bioma Mata Atlântica no escopo do Código Florestal, pode-se concluir que a Suprema Corte decidiu implicitamente sobre a legitimidade da alteração legislativa que importou na alegada redução protetiva.”
Outro argumento que me pareceu elástico foi o seguinte: “O Superior Tribunal de Justiça – STJ já decidiu que a proteção ao Bioma Mata Atlântica refere-se à ‘floresta em pé’ e ainda que esse julgado tenha sido proferido levando em conta a legislação anterior à Lei da Mata Atlântica, essa realidade ainda se aplica em razão da dicção legal…Se há mata nativa, não se pode falar em área rural consolidada. ” (grifo meu).
Mas senhor, para a área rural ter se consolidado, foi necessário intervir em mata nativa, dado que a APP é uma área naturalmente recoberta por vegetação. E vejam, o art. 1º da Lei da Mata Atlântica é muito claro ao apontar que “a conservação, a proteção, a regeneração e a utilização do Bioma Mata Atlântica, patrimônio nacional, observarão o que estabelece esta Lei” (grifo meu). Tecnicamente, o processo de regeneração começa com espécies herbáceas, com plântulas, etc., de modo que um ambiente em regeneração inicial se caracteriza, em fases, de modo totalmente diverso de uma floresta em pé.
E ainda, a Lei n.º 11.428 incide sobre uma área geográfica ampla, independente se é área de preservação permanente, reserva legal ou área útil, por exemplo, não importa! Não é possível indicar a aplicação da Lei da Mata Atlântica apenas para onde há floresta em pé, pois isso seria um impeditivo à regeneração da mesma e contrário ao que prevê a própria lei especial de proteção ao bioma.
Ademais, a lógica seria a seguinte: após a devastação, basta não se permitir que a floresta ultrapasse determinada fase da regeneração inicial, que sempre se poderá destruí-la novamente, já que jamais seria considerada uma mata nativa ou floresta em pé, indo na contramão do que preconiza a norma florestal.
Questionamentos finais
Ah! Então se eu for regularizar um empreendimento antigo em área de Mata Atlântica, eu devo compensar ou recuperar a área ocupada na forma da lei? SIM! Isso considerando o ano de 1993 como marco temporal, por conta do Decreto n.º 750/1993, que dispunha “sobre o corte, a exploração e a supressão de vegetação primária ou nos estágios avançado e médio de regeneração da Mata Atlântica”.
Ainda neste aspecto, um outro ponto de suma importância desta lei é o que diz seu art. 5º: “a vegetação primária ou a vegetação secundária em qualquer estágio de regeneração do Bioma Mata Atlântica não perderão esta classificação nos casos de incêndio, desmatamento ou qualquer outro tipo de intervenção não autorizada ou não licenciada”. Então as supressões sem autorização em área de vegetação nativa do Bioma Mata Atlântica, sejam ou não em APP, tenham sido ou não anistiadas, ainda sim configuram práticas não autorizadas e não licenciadas, o que não descaracteriza a vegetação, tornando plena a aplicabilidade da Lei.
É de se impressionar, vale dizer, que uma argumentação jurídica consiga diminuir a proteção de um espaço sobre o qual incidem duas normas protetivas especiais, a de área de preservação permanente presente na Lei Florestal e a da Lei da Mata Atlântica. Não é à toa que a floresta amazônica já perdeu uma Minas Gerais somada a um Pernambuco inteiros ou 32 Sergipes, com especial alta no desmatamento em 2019, quando perdeu mais de 10 mil km² em matas nativas.
Caros leitores, eu rogo: vamos proteger o meio ambiente natural. Sejam campos, savanas ou florestas; seja rio, mar ou ar. Nós só existimos porque ele existe; e antes de dizimá-lo, nós é que seremos dizimados.
Ah! Fiquem em casa!
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