Com tantos acontecimentos na seara ambiental no Brasil, é difícil apontar um assunto de destaque. Mas neste fim de junho, digo com propriedade que o tema é um só: o novo Marco regulatório do saneamento. Isto porque o Senado Federal aprovou, em 24 de junho desse ano complicado, o Projeto de Lei n.° 4162, de 2019.
O que é o Novo Marco do Saneamento?
Este PL, que apenas necessita da sanção presidencial para ser promulgado como lei, traz uma série de mudanças na legislação de criação da Agência Nacional de Águas – ANA, na Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei n.º 12.305/10), na Política Nacional de Saneamento (Lei n.º 11.445/07), entre outras normas. Entretanto, a polêmica se deu em torno da possibilidade ou da ampliação de possibilidade quanto à privatização dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário.
Em primeiro lugar, parece inoportuno votar uma norma tão importante em pleno cenário de pandemia descontrolada (sim, meus amigos, a pandemia de coronavírus no Brasil está descontrolada!).
O que diz o Novo Marco?
Bom, como o tempo não volta e o PL já está aprovadíssimo (apenas 13 senadores votaram contra), vamos às mudanças que considero pontos de atenção: a ANA tornou-se responsável pela instituição de normas de referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico; é a Agência também que fará a regulação tarifária destes serviços; a prestação dos serviços públicos de saneamento básico por entidade que não integre a administração do titular depende, agora, da celebração de contrato de concessão, mediante prévia licitação (seja este prestador público ou privado); titulares de serviços públicos de saneamento básico deverão publicar seus planos de saneamento básico até de 2022 e atingir a universalização até 2033; e compete ao Município promover o licenciamento ambiental das atividades, empreendimentos e serviços de saneamento básico.
Destes pontos, discutirei três que se entrelaçam e que parecem ter possíveis consequências amplas na vida do brasileiro; são eles a regulação, a privatização e o estabelecimento de prazos.
Regulação
Esclareço que há muito é possível que empresas privadas sejam executoras do saneamento no país. Isto aconteceu no Tocantins em 1998 e é o caso, hoje, de Manaus, Olinda e Teresina, entre outros, que têm empresas privadas de dois grupos empresariais atuantes, o Aegea e o BRK Ambiental. A diferença é que, com a nova norma, as empresas públicas (como a COPASA, por exemplo) terão que competir de igual para igual com as privadas, o que se dará através de processo licitatório. Ficou vedada a possibilidade de conceder, sem este processo, as atividades de abastecimento de água e esgotamento às empresas públicas.
Por outro lado, não havia, antes do PL em tela, a existência de uma agência reguladora federal para a atividade. Neste assunto, tudo que eu penso é: espero que a ANA não aja como a ANAC e ANATEL. Afinal, qual brasileiro pode dizer que a regulação destas duas agências é forte o suficiente para proteger o consumidor? Quem não se lembra da história da cobrança de bagagem? Quem não sofre com o serviço de telefonia do Brasil?
No caso do saneamento, eu vejo um agravante; é que, diferente de andar de avião e usar o telefone, o saneamento é um direito humano e não um bem mercadológico. Isto é o que diz Léo Heller, notório especialista na área de saneamento e relator do Conselho de Direitos Humanos das Organizações das Nações Unidas (ONU) para os Direitos à água e ao saneamento.
Privatização
Há que se considerar ainda que a experiência mundial no assunto mostra que este tipo de serviço se apresenta como monopólio natural, afinal não há como vários prestadores atuarem em um mesmo município ou grupo de municípios. Neste tópico, adianto que há um movimento em várias cidades do planeta para reestatizar serviços de água e esgoto.
A tendência então é que, de início, grandes empresas privadas consigam a gestão de saneamento nas cidades mais populosas e rentáveis e que as estatais, se não acabarem, fiquem com as cidades mais problemáticas. Destacando ainda que, usualmente, as cidades mais populosas e ricas já têm rede de coleta de esgoto e distribuição de água, bem como sistemas de tratamento de esgoto estabelecidos, enquanto cidades menores necessitam da instalação de toda a infraestrutura, o que custa muito caro.
Vou dar o exemplo do que aconteceu no Tocantins. Houve, em 1998, a privatização da Saneatins, empresa estadual que prestava serviços de saneamento, através da venda de suas ações majoritárias para a Odebrecht Ambiental. Com isso, o Estado viu apenas as cidades com mais de 50 mil habitantes serem atendidas por saneamento. Em 1998, pouco mais de 40% da população estadual era atendida com abastecimento de água e praticamente 0% da população usufruía dos serviços de coleta e tratamento de esgoto. Doze anos após o início do processo de privatização, mais de 70% da população tocantinense passou a ser atendida com abastecimento de água, já a coleta e tratamento de esgoto foi expandida para apenas 12 municípios e 13,56% da população estadual; um aumento pífio.
O problema foi tamanho que em 2013, o Estado criou a Agência Tocantinense de Saneamento, a qual ficou responsável pela atividade em 79 cidades do Estado e do atendimento ao meio rural, que não tinham sido contemplados pela iniciativa privada.
Estabelecimento de prazos
Sobre os prazos, não acho que cabem na legislação ou que fazem alguma diferença para a efetividade da conquista da universalização. Primeiro porque o próprio Plano Nacional de Saneamento Básico já previu a universalização dos serviços de abastecimento de água e coleta e tratamento de esgotos até 2033. Segundo porque, mesmo com a obrigação (sem prazo) de elaboração dos Planos de Saneamento estaduais e municipais trazidos por leis anteriores (Política Nacional de Saneamento e Políticas Estaduais), muitos entes ainda não cumpriram; nós estamos falando de 13 anos da promulgação da Lei 11.445.
Em Minas Gerais, por exemplo, não foi elaborado o Plano Estadual de Saneamento Básico até hoje. Segundo dados da Fundação João Pinheiro, dentre os 853 municípios mineiros, apenas 28,5% tinham pronto seu Plano Municipal de Saneamento Básico em 2014 e outros 48,1% estavam elaborando os seus. A região com a maior taxa de municípios que não têm o Plano é a do Jequitinhonha. Não por acaso, esta região tem maior concentração de cidades com baixa renda per capita e menores populações.
Para facilitar a realização dos prazos estabelecidos, a nova norma traz a possibilidade de o exercício da titularidade dos serviços de saneamento ser realizado também por gestão associada, mediante consórcio público ou convênio de cooperação, nos termos do art. 241 da Constituição Federal. Mas esta novela nós já vimos antes! Aconteceu com a Política Nacional de Resíduos Sólidos, que, com o objetivo de acabar com os lixões Brasil afora, criou a possibilidade de consórcios para resolver o problema. Não funcionou. Estima-se que 40,5% dos resíduos sólidos urbanos do país foi despejado em locais inadequados por 3.001 municípios. Ou seja, 29,5 milhões de toneladas de RSU acabaram indo para lixões ou aterros controlados.
A realidade no Brasil antes do Novo Marco
É verdade que o Brasil apresenta taxas de abastecimento de água e principalmente de esgotamento sanitário muito aquém da universalização e destoantes de seu poder econômico. Mas também é verdade que a desigualdade socioeconômica do país imprime seu padrão no saneamento e quanto a isto, nada tem a melhorar a iniciativa privada. Quem não tem acesso a este direito humano no país são os pobres e os moradores de áreas rurais. E é possível fazer mais recortes. Dentro de uma cidade, quem tem menos acesso são os moradores das periferias; dentro de um Estado, são os moradores das regiões com menor renda e menor população; dentro do Brasil; são os nordestinos e nortistas.
Segundo dados do SNIS, 83,6% da população total do Brasil tem acesso à água e 53,2% tem acesso a esgotamento sanitário. Do esgoto coletado, apenas 46,3% é tratado. Ademais, entre as regiões brasileiras temos os seguintes percentuais: norte, 57,1% da população é abastecida com água tratada; Nordeste, 74,2%; Sul, 89,2%; centro-oeste, 89,0%; e sudeste, 91,0%. Sobre o esgoto, os dados são alarmantes. O SNIS mostra que apenas 10,5% da população da região Norte tem acesso a esgotamento; Nordeste, 28%; Sul, 45,2%; centro-oeste, 52,9%; e sudeste, 78%.
Ficou claro que o novo marco regulatório do saneamento vai dificultar a vida das empresas públicas e facilitar a das companhias privadas. E eu não acho que deve existir a lógica do lucro sobre um direito humano fundamental! Além disso, a lei não se focou em um grande problema do acesso ao saneamento no Brasil: a desigualdade socioeconômica.
Por fim, digo que não identifiquei nesta nova norma nenhuma inovação legal positiva que mereça destaque do ponto de vista ambiental. Pessoalmente, creio que o problema do saneamento no país seria resolvido com programas de investimentos contínuos, independentes de mandatos, com focos nas áreas com maiores vulnerabilidades socioeconômicas.
__________ xxx __________