Há alguns meses, discutindo com uma amiga que é, como eu, engenheira florestal, chegamos à conclusão de que a Lei n.º 12.651/12, conhecida como Código Florestal, possui uma incoerência ou um paradoxo, eu diria, quando trata da proteção de apicuns e salgados. Mesmo passados 6 anos de sua promulgação e ainda com todo tipo de remendo, de medida provisória a ação direta de inconstitucionalidade, ainda lidamos com uma norma tecnicamente falha.
Já no seu art. 3º, incisos XIV e XV, esta lei conceitua, respectivamente, salgados como “áreas situadas em regiões com frequências de inundações intermediárias entre marés de sizígias e de quadratura, com solos cuja salinidade varia entre 100 (cem) e 150 (cento e cinquenta) partes por 1.000 (mil), onde pode ocorrer a presença de vegetação herbácea específica”; e apicuns como “áreas de solos hipersalinos situadas nas regiões entre marés superiores, inundadas apenas pelas marés de sizígias, que apresentam salinidade superior a 150 (cento e cinquenta) partes por 1.000 (mil), desprovidas de vegetação vascular”. O que isso quer dizer? Bom, basicamente que salgados e apicuns são tipos ou formas de habitats que estão inseridos no ecossistema manguezal.
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O manguezal é uma fitofisionomia da Mata Atlântica, assim definido pelo art. 1º da Lei n.º 11.428/06 (Lei da Mata Atlântica), e um ecossistema conhecido por sua característica de ecótono, uma vez que nasce da relação dos rios (água doce) com o mar (água salgada), criando ambientes salobros ou salinos, de substrato inconsolidado e alagados (permanente ou periodicamente). As espécies florestais que ali habitam têm em comum as adaptações para sobrevivência neste tipo de ambiente, como raízes aéreas. No Atlas dos manguezais do Brasil, publicação do Instituto Chico Mendes da Biodiversidade – ICMBio, há belíssimas explicações sobre o manguezal, e nele está apresentada a importância desta fitofisionomia, por exemplo, como protetora da zona costeira, garantindo sua estabilidade e evitando ou minimizando sua erosão, além de ser habitat para diversas espécies de fauna e de flora.
É possível que aqueles que não têm familiaridade com este ecossistema não compreendam esta minha inferência de forma imediata. Segue uma explicação: o manguezal é composto por diferentes feições que se instalam de acordo com as características edáficas e topográficas ao longo da faixa entre marés (aproveite e releia os conceitos legais supracitados). Entre as mencionadas feições estão os apicuns, também denominados de salgados ou planície hipersalina, que, muitas das vezes, naturalmente aparecem sem cobertura vegetal. Este fato, não quer dizer, no entanto, que não há importância ecológica na proteção do apicum ou dos salgados. Explica-se, no Atlas supramencionado, que os apicuns são a “porção mais interna do ecossistema, onde pode ser encontrada superfície areno-lamosa (mistura de areia e lodo) aparentemente desprovida de vida, somente atingida pelas marés de sizígia ou marés de lua (lua nova ou cheia). Ao contrário do que muitos pensam, o apicum – também denominado salgado ou mussuruna, um termo indígena – é extremamente rico em vida. É nessa planície hipersalina que se concentram os nutrientes que o manguezal vai utilizar para sintetizar matéria orgânica vegetal e animal. Nessas clareiras do manguezal podem ser identificadas associações vegetais de porte herbáceo”.
Peço desculpas pela longa citação, mas a explicação do instituto está perfeita e clara para embasar aqui meu ponto.
Entendemos a partir do exposto que os apicuns e salgados tecnicamente podem ser incluídos nos mesmos grupos de feições e que pertencem ao ecossistema manguezal. Pois bem, voltando à história da conversa com a amiga, falei a ela o seguinte: o código florestal trata estes habitats como se fossem diferentes e ainda como se ocorressem isoladamente, fora do ecossistema manguezal.
Isto por que a lei estabelece, em seu art. 4º, inciso VII, que são áreas de preservação permanente – APP os manguezais em toda sua extensão. A mesma norma restringe a intervenção em APP apenas para atividades de utilidade pública, interesse social e baixo impacto, como expresso no art. 8º. E ainda, tratando-se especificamente de manguezal, está disposto no parágrafo 2º deste artigo que a intervenção ou a supressão de vegetação nativa neste ecossistema “poderá ser autorizada, excepcionalmente, em locais onde a função ecológica do manguezal esteja comprometida, para execução de obras habitacionais e de urbanização, inseridas em projetos de regularização fundiária de interesse social, em áreas urbanas consolidadas ocupadas por população de baixa renda” (grifo meu).
Seguindo, o capítulo III-A do texto legal elenca todas as formas de “uso sustentável” dos apicuns e salgados, que se resumem basicamente a permissão de uso destes ambientes para atividades de carcinicultura e salinas. E aí é que está o conflito: carcinicultura e salinas não são atividades de interesse social, utilidade pública e baixo impacto segundo a própria lei (art. 3º), nem são obras habitacionais ou de urbanização.
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Ora, vamos concatenar as ideias de maneira mais direta: o manguezal é área de preservação permanente, os apicuns e salgados estão inseridos no ecossistema manguezal, carcinicultura e salina não são atividades passíveis de serem exercidas nas APPs, ou seja, a lei proíbe e permite, ao mesmo tempo, atividades de carcinicultura e salinas nos apicuns e salgados por pura falta de acurácia técnica.
E mais, o art. 11-A, que regulamenta o que chama de uso ecologicamente sustentável dos apicuns e salgados, no seu inciso II, diz que as atividades desenvolvidas deverão garantir a “salvaguarda da absoluta integridade dos manguezais arbustivos e dos processos ecológicos essenciais a eles associados, bem como da sua produtividade biológica e condição de berçário de recursos pesqueiro”. Pergunto ao legislador: como? Instalar tanques de carcinicultura, uma atividade com conhecidos significativos impactos negativos ao meio ambiente, exatamente no apicum, que, como vimos, concentram os nutrientes que o manguezal vai utilizar para sintetizar matéria orgânica vegetal e animal, é incompatível com salvaguardar os processos ecológicos essenciais associados ao manguezal.
Não poderia deixar de mencionar ainda a Resolução CONAMA 312/2002, que dispõe sobre o licenciamento de atividade de carcinicultura em zona costeira. Esta resolução é solar ao dispor, no seu art. 2º, que “É vedada a atividade de carcinicultura em manguezal”. Argumentarão que a Lei n.º 12.651 tem mais poder, digamos assim, que a resolução CONAMA; e eu digo que, hierarquicamente, é verdade. Mas não deixa de ser complexo, do ponto de vista da segurança jurídica, a edição de uma lei que vai contra disposições normativas anteriores e mais acuradas, do ponto de vista técnico, que ela própria. E mais, esta resolução ainda está em vigor! Claro, naquilo que é compatível com a norma supra.
Quando eu ainda estava na Universidade, assisti a uma palestra de um membro do Ministério Público Federal lotado no Rio Grande do Norte que já argumentava contra a carcinicultura em manguezais, mas só agora pude notar o tamanho da incoerência e a gravidade do dispositivo, que permite a realização de atividade de grave impacto para o manguezal em toda a sua extensão. Mais um ponto paro o Aldo, menos um para o meio ambiente.
Veja também:
- A legislação aplicada ao licenciamento ambiental
- Obrigações pós licenciamento ambiental
- Cartilha do Código Florestal Brasileiro
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