O direito ambiental é uma disciplina regida por alguns princípios próprios, consolidados a partir da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n.º 6.931/81) e, principalmente, da Constituição Federal de 88. Outros princípios foram emprestados de diversas matérias do direito, digamos, clássico, como o administrativo, o civil e o penal. Para quem não é bacharel em direito, como eu, tudo pode parecer um tanto confuso.
Para entendermos estas diferenças sugiro que observemos a divisão das três responsabilidades a que estamos sujeitos em caso de realizarmos condutas lesivas ao meio ambiente e suas características. São elas a responsabilidade penal, administrativa e civil, todas dispostas no parágrafo 3º do art. 225 da Constituição referida.
Sobre a primeira incidem as regras do direito penal, sendo a responsabilidade subjetiva, ou seja, que necessita do dolo ou culpa, que por sua vez deriva do fato típico, elemento essencial no conceito de crime. Este entendimento está ratificado na Lei n.º 9605/98, mais conhecida como Lei de Crimes Ambientais.
Saiba mais: Licenciamento Ambiental Federal
Sobre a segunda, incidem as regras do direito administrativo, inclusive quando tratamos de detalhes de processos, como prazos e instâncias de análise. Em relação à responsabilização, há divergência na doutrina se esta é objetiva ou subjetiva. A Advocacia Geral do Estado de Minas Gerais, por exemplo, considera esta responsabilidade subjetiva pelos motivos expostos no Parecer n.° 15877 de 2017, indo de encontro ao entendimento da Advocacia Geral da União. Há ainda decisões da terceira e segunda turmas do STJ no mesmo sentido, da responsabilidade administrativa ambiental subjetiva.
Por fim, a responsabilidade civil em matéria ambiental tem claramente estabelecido em lei própria, qual seja, a PNMA (art. 14, paragrafo 1º), que independe de dolo ou culpa, bastando existir o dano e o nexo causal para sua imputação. Sendo assim, é objetiva.
Num processo cível, cabe às partes fazer prova dos fatos alegados. Com o novo Código de Processo Civil – CPC, a teoria de produção de provas passou de apenas considerar a distribuição estática da produção para considerá-la juntamente com a distribuição dinâmica do ônus da prova (art. 373)¹. Porém, em processos que tratam de responsabilização civil em matéria ambiental, grande parte da jurisprudência utiliza em qualquer situação a teoria da inversão do ônus da prova. Isto é, o acusado deve provar que não cometeu o ilícito em detrimento da obrigação do acusador. Por exemplo, se o Ministério Público – MP me acusa de haver cometido um ilícito ambiental, tenho eu que afastar minha responsabilidade civil e não o acusador, neste caso, o MP.
O mesmo acontece quando tratamos de autos de infração lavrados pelos órgãos ambientais. No processo administrativo, cabe ao autuado afastar sua responsabilidade. Isto mesmo se considerarmos responsabilidade administrativa subjetiva pois, neste caso, adota-se a teoria de culpa presumida.
A inversão do ônus da prova não é novidade no ordenamento jurídico brasileiro, estando explícita no Código de Defesa do Consumidor – CDC, Lei n.º 8.078/90, precisamente no art. 6, inciso VIII. Ademais, esta norma alterou a Lei da Ação Civil Pública de responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, de n.º 7.347/85. A partir da aludida alteração, ficou disposto que “aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor”. Abre-se assim o caminho para a aplicação da inversão do ônus da prova quando a defesa em juízo dos direitos difusos (como é o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado).
A inversão do ônus da prova tem ainda intrínseca relação com o princípio da precaução, basilar do direito ambiental, que busca evitar a ocorrência do dano; bem autoexplicativo. É tanto que não só nos processos de responsabilização ambiental aplica-se a inversão do ônus da prova, mas também quando a obtenção das devidas autorização e licenças para o exercício de atividades utilizadoras de recursos naturais e com potencial de degradação ambiental. Exatamente por isso que deve o empreendedor provar, através da elaboração e apresentação de estudos ambientais, que os potenciais impactos gerados por sua atividade podem ser evitados ou mitigados.
Veja Também: Compensação Ambiental – o que prevê a Lei 13.668/2018
No informativo STJ n.º 0404, de agosto de 2009, a segunda turma explica o entendimento que, “nas ações civis ambientais, o caráter público e coletivo do bem jurídico tutelado e não eventual hipossuficiência do autor da demanda em relação ao réu conduz à conclusão de que alguns direitos do consumidor também devem ser estendidos ao autor daquelas ações, pois essas buscam resguardar (e muitas vezes reparar) o patrimônio público coletivo consubstanciado no meio ambiente. A essas regras, soma-se o princípio da precaução. Esse preceitua que o meio ambiente deve ter em seu favor o benefício da dúvida no caso de incerteza (por falta de provas cientificamente relevantes) sobre o nexo causal entre determinada atividade e um efeito ambiental nocivo. Assim, ao interpretar o art. 6º, VIII, da Lei n.º 8.078/1990 c/c o art. 21 da Lei n.º 7.347/1985, conjugado com o princípio da precaução, justifica-se a inversão do ônus da prova, transferindo para o empreendedor da atividade potencialmente lesiva o ônus de demonstrar a segurança do empreendimento”².
Ora, se a Constituição traz o direito de todos ao meio ambiente equilibrado, justo pois que quem explorará este ambiente arque com os custos de provar a capacidade de mantê-lo neste estado, preservando-o para as atuais e futuras geração. Esta é a premissa.
Já quando dos processos, devemos nos lembrar simplesmente que a responsabilidade civil é objetiva, ou seja, prevê que haja o dano e que haja um lastro entre este e determinado empreendimento, cabendo assim ao detentor do poder econômico e usufrutuário do bônus advindo da exploração ambiental provar que não há a ligação presumida entre o dano encontrado e a atividade por ele desenvolvida. É ele, inclusive, que detém maior capacidade técnica e informacional para tal.
Cabe salientar que esta inversão, pelo menos ao meu ver, não se aplica a ações de responsabilização penal pela prática de ilícitos ambientais. Este entendimento também pode ser encontrado em decisões dos tribunais, como trazido na decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso, 3ª Câmara Criminal, em relação ao habeas corpus n.º 39.144/2006. Para Lenio Streck, Professor e Pós-Doutor em Direito Público, a inversão do ônus da prova não se aplica em nenhuma situação de ilícito penal³.
Mas por que falar agora sobre a inversão do ônus da prova? Old news em matéria ambiental. Porque há pouco mais de 2 meses, o Superior Tribunal de Justiça – STJ editou sumula, de n.° 618, finalmente firmando o entendimento sobre esta matéria. Em seu texto, lê-se: “A inversão do ônus da prova aplica-se às ações de degradação ambiental”.
Considero interessante o uso deste instrumento processual, pois entendo que quem executa atividade econômica é quem detém as melhores possibilidades do ponto de vista técnico, econômico e até documental, de produzir provas acerca da mesma. Sabe-se que em matéria ambiental esta produção pode ser complexa, lenta e custosa, devendo ser abarcada pelo potencial poluidor. Ademais, é o empreendedor que fica com a maior parte do bônus da exploração de recursos naturais, sendo plenamente capaz de suportar o ônus.
Já para Milaré, notório Professor de Direito Ambiental, a inversão do ônus da prova em qualquer caso, sem critério, pode causar desequilíbrio entre as partes, ferindo o princípio da isonomia. O Professor entende ainda que a consolidação do uso deste instrumento deveria ser realizada pelo legislativo, em norma própria, e não pelo judiciário⁴.
[1] A teoria estática é aquela em que o autor da ação deve provar os fatos que constituem o direito invocado, e, ao réu, refutar os fatos a ele imputados. Esta teoria não leva em consideração as condições probatórias das partes. Já a teoria dinâmica permite que o juiz delibere, a partri de decisão fundamentada, quem deve produzir as provas em determinada ação, permitindo que seja cumprido o princípio da isonomia.
[2] REsp 972.902-RS, Rel. Min. Eliana Calmon, julgado em 25/8/2009.
[3] Inverter o ônus da prova e flagrante inconstitucionalidade
[4] O ônus da prova nas lides ambientais e a sumula 618 do STJ
__________ xxx __________